Crise na indústria calçadista do Sul provoca desemprego e desilusão nas famílias

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 22 de julho de 2018 às 18:47
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 18:53
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Centenas de famílias são afetadas pela queda na criação de vagas no setor

Ronaldo da Silva, 48 anos, decidiu abandonar o ramo calçadista ao ser demitido da Bottero na última semana. Embora estivesse há cinco anos e meio na empresa, sua experiência com sapatos vem de 1982, quando pisou pela primeira vez em uma linha de produção na vizinha Sapiranga.   

Ele recém havia deixado a roça, em Santo Antônio da Patrulha, buscando melhores condições de vida nos vales do Sinos e do Paranhana. Com o desligamento, ele pretende ficar na informalidade por três anos, período que ainda precisa esperar para ter direito à aposentadoria.   

— Vou fazer bicos de pedreiro, umas pinturas aqui e outras ali, até me aposentar. Estou enjoado do trabalho em fábrica de calçado. As condições pioraram muito nos últimos anos — contou.   

Com dois filhos (de um e 12 anos) para criar, além de dois que já se casaram, o sapateiro se surpreendeu com a decisão da empresa de demiti-lo. Ele e os outros 250 funcionários daquela unidade, no bairro Fazenda Martins, em Parobé, foram informados da decisão no dia em que voltavam das férias de 30 dias. Na sexta-feira passada (13), muitos foram até o Departamento de Recursos Humanos da empresa acertar os valores da rescisão.   

Entre eles, estava Adriana da Silva, 43 anos, ex-colega de Ronaldo na empresa e com 12 anos de firma.  

— Quero seguir nesta área, mas não sei como vai ser. Quando terminar o seguro-desemprego, todas essas pessoas demitidas agora irão entregar currículo. A concorrência vai ser muito grande, até porque têm várias fábricas fechando — analisou.  

Menos experiente, William Cezar Mello, 20 anos, também demitido da Bottero no retorno das férias, está disposto a trocar de profissão. O jovem entrou na empresa de calçados em 2014, como menor aprendiz. Tempos depois, foi contratado no cargo de costureiro, mas sempre esteve ciente de que poderia ser demitido.  

— Imaginava, porque a Bibi está demitindo gente, a Crysalis fechou. A gente sempre ouve falar que o setor está em crise. A Bottero é uma empresa grande e, mais cedo ou mais tarde, iria sentir o efeito do enfraquecimento do mercado.  

Assim como Ronaldo, William pretende mudar de ramo, por causa da remuneração, que julga baixa:   

— Ganhava muito pouco pelo tanto que tínhamos de produzir. O que surgir para mim, não sendo fábrica de calçado, me interesso.  

 Papel do RS no setor calçadista evidencia a crise econômica  

É consenso entre especialistas e dirigentes sindicais que a crise econômica vai além do ramo calçadista, mas o problema fica mais evidente no setor por conta da representatividade do Rio Grande do Sul no cenário nacional. Principal fabricante de calçados do país, o Estado é responsável por metade das exportações brasileiras. Além disso, o setor abrange um terço dos postos de trabalho do país.   

Atualmente, estão empregadas 294.590 pessoas neste setor no Brasil — 96.318 delas no RS. Das 7,1 mil fábricas de calçados brasileiras, 2,5 mil estão no Rio Grande do Sul.  

— Sentimos a crise no calçado muito forte porque o RS se destaca neste setor — avalia Kátia Isse.  

Presidente interino da Federação dos Trabalhadores na Indústria do Calçado e Vestuário do RS, João Pires diz que as demissões são preocupantes, principalmente porque cada desligamento afeta outras duas pessoas do núcleo familiar, em média. No entanto, Pires considera que alarmar a crise é estrategicamente benéfico aos empresários:    

— Chegou o período de negociação salarial e, para os empregadores, é vantajoso falar em crise. Dos 23 sindicatos que a gente representa, apenas em Teutônia, Santo Antônio da Patrulha e Osório as demissões foram maiores do que as admissões em 2018 — contrapõe.   

O representante da Abicalçados, Heitor Klein, tem opinião diferente. Para ele, fabricantes de produtos de faixa intermediária de preço são os que mais sentem a recessão, pois seus clientes tendem a migrar para calçados mais baratos.  

— O último a perceber a crise é o empresário que fabrica calçado com preço mais elevado. Essa população (clientes) não sente de forma tão impactante a crise — sublinha.  

Crise atinge outros setores da cadeia produtiva  

A crise calçadista afeta também as indústrias de curtume, integrantes da cadeia produtiva. Presidente-executivo da Associação das Indústrias de Curtume do Rio Grande do Sul (Aicsul), Moacir Berger de Souza reforça que o encerramento de qualquer unidade fabril que industrialize couro reflete no enxugamento do mercado em potencial, referindo-se à Bottero e à Crysalis.  

— São clientes nossos que pararam de comprar — sintetiza.   

No entanto, o empresário diz que, isoladamente, as demissões recentes não causarão desligamentos no setor. Ele considera “mais um episódio inconveniente dentro de tantos outros” e comenta que a saída tem sido procurar abrigo no mercado externo. Hoje, 80% da produção é exportada. Anualmente, os curtumes gaúchos processam cerca de 2 milhões de couros de pele bovina em 90 unidades que empregam cerca de 14 mil pessoas.  

No setor de máquinas para couro e calçados, a preocupação é com o pessimismo dos investidores.   

Demissões e fábricas fechadas, o que acontece com os calçadistas?

— Nosso setor está diretamente ligado à visão de futuro, otimismo, progresso. O empresário, para investir em equipamentos e novas tecnologias, precisa estar enxergando um cenário positivo. Como isso não está acontecendo, nossas vendas ficam prejudicadas — esclareceu o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Máquinas para Couro e Calçados (Abrameq), Marlos Davi Schmidt.  

A recessão no setor industrial vem desde 2014, explica, e desde então as empresas vêm se ajustando ao quadro de dificuldades. Entre as medidas adotadas nestes quatro anos estão a captura de novos mercados e a redução do quadro funcional para diminuir a capacidade ociosa.   

— O quadro de funcionários, de maneira geral, está estabilizado. Estávamos bem otimistas, inclusive, no início do ano, mas, de junho pra cá, depois da greve dos caminhoneiros e com a proximidade das eleições, ficamos mais preocupados.  (Publicado no ZH, Porto Alegre)


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