Como o regime militar sustentou a ideia de ‘futebol arte’

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 24 de setembro de 2018 às 09:23
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 19:02
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A
hegemonia cultural é sempre um processo, formado por experiências, relações e
atividades, compreensões e limites específicos e mutáveis. Não atua apenas
passivamente como forma de dominação. Para prevalecer, a hegemonia tem que ser
renovada continuamente, recriada, defendida e modificada. No caso do futebol
brasileiro, o discurso oficial do regime militar, representado naquele momento
pelo pensamento de Gilberto Freyre e dos intelectuais do CFC, era plenamente
satisfatório em associar, por exemplo, as vitórias da seleção brasileira de
futebol às ideias de mestiçagem, tanto no sentido racial como no sentido de
integração regional. Entretanto, não satisfazia quando se tentava associar as
habilidades naturais do jogador brasileiro à aquisição das técnicas mais
modernas da educação física e da medicina esportiva para o disciplinamento do
corpo do atleta. Era, portanto, necessário recriar, modificar, adaptar o
discurso oficial às novas demandas e necessidades sociais sob o risco de perder
o seu poder de convencimento. O desconforto dos intelectuais do CFC com as
ideias que estavam circulando naquele momento era demonstrado nas matérias
esportivas produzidas pela grande imprensa, que já aceitavam a bricolagem da
ideologia freyriana da mestiçagem com o tecnicismo, sem maiores problemas. Um
artigo escrito por Armando Nogueira, após a vitória brasileira na Copa do
México, dizia que o título no México só foi possível devido a associação de
valores artísticos e tecnológicos. A arte incomparável de Pelé somente conseguiu
conquistar o título “porque um comando competente soube executar um programa de
preparação física e de habilitação tática”. Os brasileiros foram os que
melhores se prepararam para a altitude mexicana. Tinham usado as mais modernas
técnicas para colocar os seus atletas em condições físicas superiores aos
adversários. E como prova disso, a seleção havia vencido todas as suas partidas
no segundo tempo, quando o antagonista não possuía mais condição para resistir
fisicamente. O tecnicismo e o disciplinamento do corpo, associados à preparação
física, antes considerados exógenos, fora das tradições brasileiras, passaram a
ser incorporados a uma noção de modernidade que não se desvinculava da
tradição. Era justamente a tecnologia que auxiliava os brasileiros a adquirirem
condições necessárias para a construção uma grande nação. Mostrava que a
seleção, como metáfora da sociedade brasileira, estava historicamente ligada às
suas origens miscigenadas e, ao mesmo tempo, estava construindo algo novo
porque era tecnologicamente moderno, porque era desenvolvido. Era esse o novo
modelo de nação que o regime militar defendia. E a vitória na Copa do Mundo era
uma prova cabal de que o país estava sendo dirigido corretamente pelos seus
governantes. Nesse sentido, houve uma apropriação do conceito “futebol arte”. A
categoria tinha uma origem estritamente esportiva. Ganhou consistência por
volta de 1966, após a eliminação da seleção brasileira na primeira fase da Copa
do Mundo disputada na Inglaterra. A imprensa procurava entender como os
europeus conseguiram tal superioridade, conquistando as quatro primeiras
posições no certame mundial. Alguns especialistas começaram a enfatizar a
mudança na preparação física que estava ocorrendo no futebol europeu. E essa
mudança tinha nome: era uma concepção do esporte que passaram a chamar de
“futebol força”. O seu idealizador era um estudioso dos problemas da educação
física, o major Raoul Mollet, um belga que também era presidente do Comitê
Olímpico de seu país. Durante muito tempo se interessara em saber como o
futebol dos europeus poderia achar um método para superar os habilidosos
sul-americanos, com destaque para os bicampeões brasileiros. Para Raoul Mollet,
o futebol europeu teria que assentar-se sobre o tripé força/velocidade/resistência,
três dados de que não cuidavam os sul-americanos e que seria para eles um
triplo “calcanhar de Aquiles”. A equação estava armada pelo major belga e daí
para que ele formasse um novo método de treinamento, balanceado e intensivo,
foi um passo. A seleção belga de futebol adotou os seus métodos de preparação
e, ao receber a equipe brasileira em 1963, aplicou-lhe um surpreendente placar
de 5 gols contra 1. Na época, a imprensa acusou abertamente que estava
vivenciando um caso de doping entre os belgas. Os brasileiros ainda não sabiam
que estavam se deparando com o “power training”, o novo e revolucionário
padrão, que dava força, velocidade e resistência aos craques de futebol. Os 5 a
1 contra os bicampeões mundiais alertaram os estudiosos europeus, ainda mais
que o futebol belga até então não estivera cotado entre os melhores do
continente. A leitura do trabalho de Raoul Mollet, detalhado e exaustivo,
publicado na revista do Conselho Internacional de Esporte Militar fez com que
os céticos abandonassem de vez as críticas, pelo menos na Europa. Se o futebol
belga conseguira tão bom resultado, por que não tentar a fórmula nos outros
países de maior tradição no esporte? A adesão foi maciça na Europa, como os
brasileiros puderam verificar durante a Copa da Inglaterra. No Brasil, para
fazer oposição à concepção do “futebol força” europeu, aos poucos, a imprensa
procurou um novo conceito. Tentou-se “futebol espetáculo”, “futebol esporte” e,
finalmente, “futebol arte”. “Futebol arte” se consolidou no meio do jornalismo esportivo
da época porque era uma categoria mais flexível e menos sujeita às
prerrogativas de um único autor, como era o caso do “futebol mulato” de
Gilberto Freyre. Era perfeita para discutir, às vésperas da Copa de 1970, como
o futebol brasileiro poderia absorver as inovações tecnológicas da educação
física sem perder o que havia de mais autêntico, de mais tradicional, de mais
artístico, de mais brasileiro; macunaimicamente. Um órgão do governo que tentou
trabalhar com esta dupla especificidade do “ser brasileiro” como sendo moderno
e tradicional, tecnológico e artístico ao mesmo tempo foi a Aerp (Assessoria
Especial de Relações Públicas). As campanhas da Aerp faziam sucesso. Elas
comportavam filmes para o cinema e para a TV, além de jingles, adesivos e cartazes.
As temáticas das campanhas eram retiradas de diversas fontes. Dos intelectuais
tradicionais, a Aerp retirou alguns tópicos que eram utilizados em suas
campanhas. Podiam ser a exuberância natural, a democracia racial, o
congraçamento social, a harmônica integração regional, as festividades
brasileiras, entre outros. Juntava-se a isso, um ideal de modernidade e de
progresso, sempre almejando num futuro próximo que o Brasil se tornaria um país
desenvolvido, industrializado e tecnológico. Para o governo, o mais importante
era que as campanhas da Aerp propiciavam uma atmosfera de aprovação, de
contentamento com os rumos que os militares iam traçando para o país. O futebol
se destacava na programação da Aerp. As vitórias da seleção brasileira em 1970
possibilitaram a consolidação de canais de comunicação que permitiam ao povo
entender e acompanhar a ação do governo. Um exemplo foi um filme que a Aerp fez
onde mostrava um gol de Jairzinho dividido em nove partes, intercaladas com
cenas brasileiras tipicamente de otimismo. E, no final, o slogan: “Ninguém
segura o Brasil!”. Fez também cartazes que foram distribuídos por todo o país,
eles vinham com o slogan da campanha e uma imagem de Pelé pulando após marcar
um gol. Já nas estações de rádio, a música de Miguel Gustavo, “Pra Frente
Brasil”, era incessantemente tocada. Sem mostrar realizações do governo ou
apresentar mensagens oficiais, a campanha programada pela Aerp deu resultados
excelentes. Mais do que mostrar a brilhante vitória esportiva na Copa, os filmes,
cartazes e programas de rádio estavam relacionados ao enaltecimento do futuro
promissor da nação que, sem negar a tradição brasileira, pretendia ser
desenvolvida tecnologicamente. Ao contrário do Conselho Federal de Cultura, a
Aerp conseguiu mesclar as teorias tradicionais que enfatizavam a miscigenação,
a solidariedade, a heterogeneidade regional e unidade nacional aos pressupostos
mais tecnicistas e disciplinares do desenvolvimento econômico e industrial. E
como confirmação desta nova realidade estava o mito de Pelé, que conseguia ser
genial com a bola no pé e um atleta perfeito ao mesmo tempo. Valorizar o mito
de Pelé não era somente uma forma de justificar o discurso da tradição da
maneira como era defendida pelos pensadores do CFC. Sem negar tais características,
agora, valorizar Pelé era também elogiar o disciplinamento do corpo do atleta,
o tecnicismo da preparação física, o quantitativo dos resultados e a
racionalidade do planejamento. Assim, o mito de Pelé conseguia unir a tradição
do passado com a tecnologia do futuro. O próprio craque concordava com tal
exposição. Num livro com a sua assinatura, ele explicava o segredo do seu
sucesso: “Não sou adepto da teoria de que um profissional já nasce feito. Você
pode nascer com certas aptidões, dons ou talentos. Mas que você, ao nascer, já
está destinado a ser um craque de bola, sinceramente, não acredito e não
concordo.”. Para Pelé: “Sucesso não é acidente. É trabalho, perseverança,
aprendizado, estudo, renúncia, e, acima de tudo, muito amor àquilo que se está
fazendo, ou preparando-se para fazer”. Era esse o modelo de discurso hegemônico
que o regime militar pretendia construir, ao unir a tradição do passado com a
tecnologia do futuro, o individualismo de cada cidadão com o interesse de
modernizar a nação, a arte com a força. Tudo isso, muito bem representado pelo
conceito “futebol arte”, à época. Entretanto, a a significação dos conceitos
também tem a sua história, e mudanças estavam por vir.

ESTE TEXTO É UMA REPUBLICAÇÃO DE ARTIGO PUBLICADO NO SITE LUDOPÉDIO

*Esta coluna é semanal e atualizada às quintas-feiras.​


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